Cyrus Smith estava numa situação terrivelmente infeliz, perdido numa ilha desconhecida. Graças a seus conhecimentos de engenharia e ciências, ele e os companheiros conseguiram fabricar ferramentas, construir diques, plantar, erguer casas e sobreviver. Além de todos esses feitos fictícios, Smith – protagonista do livro A ilha misteriosa, do escritor francês Júlio Verne – serviu de inspiração ao menino israelense Daniel Shechtman. O jovem leitor cresceu, estudou engenharia mecânica, tornou-se doutor em ciência dos materiais e, em 2011, ganhou o Prêmio Nobel de Química. Sua pesquisa revelou uma nova forma de organização dos átomos em materiais sólidos, os quase cristais, descobertos em 1982. Hoje, discute-se a aplicação desse tipo de material em várias frentes, como utensílios de cozinha e equipamentos eletrônicos. Shechtman precisou defender sua descoberta por anos, diante de ataques duríssimos de outros especialistas em sua área. Em 2009, a comunidade científica se convenceu de seus argumentos.
Ao longo dessa jornada vitoriosa, ele encontrou tempo para aplicar o estilo “mão na massa” de seu herói Cyrus Smith a outra paixão: o estudo das empresas inovadoras. Desde 1986, Shechtman ministra um curso de empreendedorismo tecnológico no Instituto de Tecnologia de Israel, o Technion, em Haifa, mesmo local onde começou a estudar engenharia. O Technion é a instituição de ensino e pesquisa mais importante de um país cujo desenvolvimento e segurança se apoia, principalmente, em tecnologia. No ranking global de inovação da escola de negócios francesa Insead, Israel aparece à frente de países como Coreia do Sul, França e Japão. Na Bolsa americana Nasdaq, Israel só perde, em número de empresas listadas, para Estados Unidos e China. Durante o programa desenvolvido por Shechtman, os alunos de ciência e engenharia assistem a palestras com empresários iniciantes, para saber as dificuldades que eles enfrentam, e aprendem noções de administração, marketing e propriedade intelectual. Ao tratar do assunto, Shechtman assume um tom quase messiânico. Ele acredita que quem abre um negócio próprio baseado em tecnologia não apenas prospera individualmente – também trabalha por uma sociedade melhor e pela paz global. Ele estará no Brasil no período de 22 de julho a 1º de agosto e passará por São Luís, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal.
ÉPOCA – O senhor diz que a importância do empreendedorismo vai muito além da economia. Como assim?
Dan Shechtman – Muitos países vivem da venda de matérias-primas, petróleo, minério, recursos não renováveis que, com o tempo, diminuirão e, eventualmente, desaparecerão. E, depois, o que esses países farão? Para ter outra fonte de receita, essas nações devem tentar desenvolver novos setores da economia e fabricar produtos tecnológicos que consigam vender – podem até ser produtos agrícolas, mas que exijam uso de tecnologia. Os países que fizerem isso encontrarão formas de dar um bom padrão de vida a todas as pessoas. Acredito que o empreendedorismo tecnológico é o caminho para manter a paz no mundo, porque as pessoas que trabalham duro para ganhar mais não querem desperdiçar isso numa guerra. Os países que não fizerem isso não prosperarão. Eles correm o risco de ver a qualidade de vida cair. Muitos desses países, em algum momento, começarão a desmoronar, e milhões e milhões de pessoas começarão a emigrar para as nações mais ricas. Como lidar com essa visão melancólica do futuro? Podemos resolver isso ao incentivar e ensinar o empreendedorismo tecnológico. Para que os cidadãos numa nação dediquem sua capacidade intelectual a projetar, fabricar e vender produtos inovadores, é necessário que o país crie as condições certas. Entre elas, encorajar a formação de engenheiros e cientistas, e encorajá-los a empreender.
"O governo não deve tentar controlar os projetos e as empresas. Ele tem de encorajar a criação dos negócios. Eles florescem de baixo para cima"
ÉPOCA – O senhor poderia se dedicar a ensinar e pesquisar química. Por que e como o senhor começou a tratar de empreendedorismo na universidade?
Shechtman – Inaugurei há 26 anos o programa de aulas de empreendedorismo tecnológico no Technion, para ensinar os alunos a iniciar um negócio próprio. O programa começou por causa das necessidades em Israel e foi estimulado pelo crescimento das exportações israelenses de produtos de altíssima tecnologia. Encorajamos nossos alunos a pensar o futuro e a ser independentes. As boas universidades passam a mensagem: “Você é tão bom que as grandes empresas vão querer contratar você”. No Technion, a mensagem que transmitimos é: “Você é tão bom que pode abrir sua própria empresa tecnológica”. Cerca de 10 mil alunos formados já passaram pelo curso, e eles estão espalhados pelo país todo. Desde então, o bem-estar da população israelense aumentou dramaticamente, assim como a renda per capita. Isso é um incentivo às pessoas de outros países a também fazer algo assim. Alunos de outros países são bem-vindos ao curso.
ÉPOCA – O que há de tão especial no empreendedorismo tecnológico? Ele é mais importante que o empreendedorismo tradicional, como abrir uma loja ou um restaurante?
Shechtman – Uma diferença é que o serviço de um restaurante, supermercado ou loja não pode ser exportado. E o empreendedorismo tecnológico é o melhor jeito de fabricar os produtos que abastecerão esses supermercados e essas lojas, de ganhar mais dinheiro com esses produtos e de fazer as pessoas gastar mais dinheiro com eles.
ÉPOCA – No Brasil, não funciona muito bem a transmissão de conhecimento entre as universidades e as empresas. Entre esses dois mundos, há divergências em relação a sigilo, objetivos, prazos, custos, patentes, divisão de lucros. O senhor tem uma sugestão para mudar isso?
Shechtman – Normalmente, a pesquisa básica fica com a universidade, e a pesquisa aplicada fica com as empresas. Não acho que seja possível mudar a mentalidade das empresas – elas precisam defender sua propriedade intelectual. Isso é típico de companhias. Mas parte da pesquisa em que essas companhias se envolvem poderia ser aberta. Em alguns países, as companhias já perceberam que não podem fazer tudo sozinhas e que a academia pode contribuir com boas ideias.
ÉPOCA – Vários países tentam reproduzir o modo de funcionamento do Vale do Silício, nos Estados Unidos, com empresários, universidades e investidores trabalhando juntos, para incentivar o nascimento de empresas inovadoras. Mas a maioria dessas tentativas de imitação não vai muito longe. Por quê? O senhor acha que Israel também tenta reproduzir a estrutura do Vale do Silício?
Shechtman – Os países que tentaram imitar o Vale do Silício adotaram iniciativas de cima para baixo, e ele não cresceu desse jeito. Temos um tipo de Vale do Silício em Israel, mas ele avançou de baixo para cima. O governo não deve se envolver nos projetos, deve apenas dar apoio para que os jovens corajosos criem suas empresas. O governo deve encorajar a criação de negócios, mas sem tentar controlar ou administrar as empresas. Não acho que Israel tenha tentado copiar o modelo (do Vale do Silício), mas estamos seguindo seus passos, uma vez que uma série de empreendedores israelenses começaram lá. Em Israel, há um grande espírito de empreendedorismo, com muitos engenheiros pensando diferente e sonhando com a companhia que podem fundar.
ÉPOCA – Israel tem muitas empresas de tecnologia. Por quê?
Shechtman – Muitos dos jovens em Israel pensam ativamente no que podem fazer na ciência e na tecnologia. Talvez a conexão esteja no ambiente de pensamento claro, de boa comunicação entre as pessoas e na natureza israelense de questionar tudo. Os jovens não aceitam nada sem entender. Eles precisam entender tudo e perguntam muito.
ÉPOCA – O senhor também foi bem insistente ao defender a descoberta que o levou a ganhar o Nobel. Foi difícil continuar, mesmo depois de ser desacreditado por colegas cientistas?
Shechtman – Pude defender meus resultados porque sabia que estava correto. Eu era o especialista no assunto, podia repetir os experimentos e provar os resultados. Apenas continuei dizendo: “Eu sei que estou certo”.
Fonte: Movimento Empreenda
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