Colunistas: Regina Araújo

Colcha de retalhos

Demorei tantos anos para entender o que levava minha mãezinha a se importar mais com os móveis da sala do que com as festas que meu pai foi sozinho durante todo seu casamento.

Questionava-me muito a razão de nunca motivar-se em fazer nada de diferente e qual a importância tão grande de manter a casa sempre limpa, a cozinha arrumada, a roupa engomada e seus filhos por perto. Tinha tanto medo de chegar visita e encontrar a casa desarrumada, afinal iriam dizer que era desleixada e péssima dona de casa.

Nem mesmo nós poderíamos chegar em casa sujas ou com os cabelos desalinhados, as pessoas iriam pensar que nós não tínhamos mãe.

Passei minha infância inteira vendo as crianças correrem, brincarem, nadar, pular corda, subir em árvores, se machucar e se curar.

Minha bronquite impediu que eu tivesse uma vida, procurava incansavelmente uma forma de mostrar a minha mãe que aquela super proteção não iria me curar. Mas hoje entendo que a proteção era para ela mesma.

Sapatos jogados, jornais espalhados, roupas no chão, eram coisas que a estressavam muito e por vezes chorava de nervoso quando a casa não estava exatamente como planejado.

Ficávamos em datas especiais implorando á minha mãe para usar uma toalha linda que havia ganhado muito tempo atrás. Era uma toalha branca, bordada de vermelho e tinha um glamour incontestável.

Usá-la nos dias de festa era um significado especial para nós crianças. Mas tudo em vão, dona Aurora era taxativa em negar sempre, afinal, poderia sujá-la, manchar de vinho ou até mesmo rasgá-la.

Foram anos da nossa infância, adolescência e depois até mesmo no almoço de casamento das filhas clamando pela bela toalha.
Não e não! Ela dizia.

Ah mãezinha. Tanto esforço para nada.
Minha mãe sofreu de mal de alzheimer por anos e toda nossa família acompanhou cada etapa desta doença.

Meu pai que sempre foi ausente ao se deparar com uma Aurora que não conseguia reconhecer, infelizmente não segurou a barra. Um misto de remorso e dor por não poder mais voltar atrás.
Ele foi durante o período da doença da minha mãe o marido que ela sonhou a vida inteira. Tarde demais.

Meu pai morreu de amor, de saudades e talvez esteja lá em cima agora fazendo todas as declarações de amor e carinhos que se esqueceu de fazer aqui na terra. Mas, e se não houver o outro lado?

Meu pai morreu logo após a minha mãe de solidão da companheira de quase cinqüenta anos de convivência. Quando da partida dos dois tivemos que limpar o apto e doar as coisas que não serviam.

Num destes dias me deparei com um pacote embrulhado em um lençol e depois num saco plástico. Fiquei muito emocionada e chorei muito.

Lá estava a toalha da dona Aurora. Intacta, mas cheia de bolor, manchas e completamente amarelada. Que coisa, estava velha sem jamais ter sido usada.

Resolvi então levar pra casa e investir meu tempo e amor nesta toalha. Mas era muito grande e tanto eu quanto minha irmã tinha mesas pequenas. O que fazer para que dona Aurora não tenha sofrido em vão?

Depois de meses consegui tirar suas manchas e de lavanderia em lavanderia deixamos ela muito bonita, mas inútil.

Foi quando tive a idéia de transformá-la numa colcha de cama. Bordei-a com carinho e coloquei um babado glamouroso.

É meus amigos, a toalha virou colcha e enfeita minha cama e minha vida. Mas dona Aurora não pode ter partido em vão. Deixa uma mensagem para cada um de nós.

Vivamos o hoje como se não fosse existir o amanhã.
Destranque os cofres, tire a poeira dos móveis, desencave suas roupas novas da gaveta e use-as agora.
Use-as todas de uma vez se preciso for.
Ame muito, beije muito, diga isso a cada instante para as pessoas próximas.
Cuide menos da casa e preocupe-se mais consigo.
Viva a vida intensamente cada instante de sua vida e creia...
A vida é o que fizermos dela.

Contatos pelo e-mail: reginaaraujo@reginaaraujo.com.br
Site: www.reginaaraujo.com.br

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